Será que é desta?

A generalização da utilização de Modelos de Informação de Construção (BIM) pode vir a ser a chave da transformação digital no negócio dos serviços de Arquitetura e Engenharia.

<p>João Silveira Costa, Administrador e Responsável da Área de Edifícios do grupo QUADRANTE</p>

João Silveira Costa, Administrador e Responsável da Área de Edifícios do grupo QUADRANTE

Informatização vs Digitalização

Há cerca de 20 anos, iniciava-se um percurso ao longo do qual as tecnologias de informação passaram de algo reservado apenas a alguns para algo que suporta a totalidade da documentação e dos métodos de produção da esmagadora maioria dos profissionais. Este movimento, ao qual resolvo aqui chamar “informatização”, “digitization” em inglês, tem vindo a ser executado por etapas, e a velocidades diferentes, consoante a complexidade das indústrias e das tarefas ou tipos de documentos a “informatizar”.

Podemos separá-lo, se quisermos, em dois ramos com contextos distintos: o primeiro, no contexto documental, consiste na substituição dos documentos físicos por versões digitais, e o segundo, no contexto processual, consiste na adoção de ferramentas que gerem fluxos de trabalho automáticos assentes em versões digitais de documentos ou de registos.

Este processo, que abrangeu todos os setores de atividade, trouxe grandes benefícios no que diz respeito à forma como se produz, ou como se executam tarefas. No entanto, relativamente à área dos serviços de Arquitetura e Engenharia, olhando para a realidade de hoje num contexto em que a documentação técnica e as atividades são já, na generalidade, geridas por sistemas informáticos, podemos constatar que nada ou muito pouca coisa mudou realmente na cadeia de valor. Ou seja, ocorreu apenas uma “informatização” e não uma “digitalização” ou “transformação digital”.

Note-se que estou a utilizar a qualificação “transformação digital” para designar uma mudança que altera significativamente a cadeia de valor, ou que cria uma disrupção na forma como qualquer atividade económica se desenvolve.

Para se ter uma ideia do que pode acontecer a este nível num determinado setor, veja-se o exemplo do que aconteceu na indústria de produção e distribuição de conteúdos musicais. A primeira transformação que ocorreu, potenciada pelo aparecimento dos iPod e outros media players digitais, pode ser vista como o passo da informatização no contexto documental de que falei acima.

Apesar das várias evoluções tecnológicas que foram permitindo a alteração dos suportes, os artistas continuaram a produzir conteúdos, as editoras a publicá-los e os retalhistas a distribuí-los pelos consumidores, cada qual ganhando as suas margens num negócio estável, independente do suporte para distribuição dos conteúdos.

Mas não foi isso que aconteceu quando a mudança de suporte foi para o digital. O aparecimento e vulgarização dos suportes de música digitais, ajudados pela massificação do acesso à internet, e a facilidade com que se duplicam e transmitem cópias de ficheiros, produziu muito rapidamente uma disrupção tremenda na cadeia de valor desse negócio, obrigando artistas, editoras e retalhistas a alterar drasticamente a forma como lidam com os consumidores e como ganham dinheiro com este negócio.

Existem muitos outros exemplos (jornais, televisões, indústria fotográfica, etc.) de setores onde a “informatização” foi rapidamente seguida por ajustes no negócio, alterações na forma como os consumidores utilizam os produtos ou serviços, alterações da distribuição das margens e, consequentemente, da relevância e do balanço de poder e de influência no negócio entre os vários stakeholders. É um padrão.

E nos serviços de Arquitetura e Engenharia? Será que vamos ter o nosso mp3, que vai alterar bruscamente a forma como os vários stakeholders interagem?

 

A transformação digital nos serviços

O processo de transformação digital é um processo sequencial: não pode haver transformação digital sem informatização, mas a informatização não implica forçosamente uma transformação digital. Os aspetos essenciais para tornar este processo possível são:

Em primeiro lugar, a infraestrutura de suporte de negócio tem de estar “informatizada” – documentação e processos devem ser realizados no domínio digital. Este aspeto é já corrente na esmagadora maioria das organizações e não representa, portanto, nenhuma barreira;

Em segundo lugar, a organização deve incentivar a que existam agentes de mudança internos e deve manter uma estrutura de governance que promova o avanço experimental, focado sempre na procura de novas formas de servir o cliente, ou em novos produtos que derivem da utilização de tecnologias digitais;

Finalmente, e em terceiro lugar – porque no campo dos serviços o maior potencial disruptivo estará certamente na capacidade das empresas em ter, ou não, ferramentas de análise poderosas – refira-se a estrutura de dados com que a organização guarda, cataloga e interliga os documentos ou registos gerados nas suas atividades operacionais, e estas com outras áreas da empresa onde existam dados estruturados (ERP, CRM, etc.). Sem uma estratégia correta de armazenamento e estruturação da informação que provém da informatização da documentação e das operações não poderão crescer iniciativas de transformação digital do negócio.

 

Um problema operacional

Na empresa de serviços que ajudei a fundar e onde trabalho diariamente há 20 anos, depois da passagem inevitável pela “informatização”, um dos projetos que iniciámos, e no qual temos lutado com algumas dificuldades operacionais, é um projeto de arquivo e gestão de informação relativa à performance de determinados indicadores técnicos que têm de ser calculados de forma muito morosa por cada obra.

Foram criadas ferramentas (software) para armazenar os dados e apresentá-los aos utilizadores, mas chegou-se à conclusão que a morosidade na obtenção de indicadores para novas obras é o aspeto que mais prejudica a operacionalização do projeto, pelo consumo de recursos necessários para carregar a informação na plataforma criada. Se estes indicadores fossem obtidos de forma automática, isso tornava o processo mais ágil, mas implicaria que a informação das obras estivesse estruturada de forma correta num formato digital, e não apenas “digitalizada”.

Enquadrando o problema nos três aspetos críticos para a transformação digital acima enunciados – informatização; agentes ou vontade de mudança; e estruturação correta dos dados – a nossa falha é claramente relativa ao último ponto. Mas a adoção recente de uma metodologia de realização do trabalho enquadrada em Modelos de Informação da Construção (BIM, na sigla em inglês) vem precisamente colmatar essa falha.

O BIM, na sua essência não é mais do que uma estruturação dos dados relativos aos vários componentes do edifício, de forma a permitir que haja sistemas informáticos que interpretem esses dados não apenas como linhas ou superfícies, para serem impressas numa folha de papel, mas como objetos que têm determinadas propriedades e que interagem uns com os outros.

Estou certo de que, com muito pouco esforço, iremos finalmente conseguir operacionalizar o nosso projeto, ligando os modelos BIM das obras, à plataforma de análise dos indicadores que já existe. Quem sabe que outros projetos virão agora?

Fonte:  Jornal Económico